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Obsessões no Autismo Adulto: Quando o Hiperfoco Vira Desespero (e o Sushi Vira Trauma)

Atualizado: 26 de ago.

Por Aline Vicente, Neuropsicóloga e mulher autista

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Como neuropsicóloga e pessoa no espectro, entendo na pele como obsessões, compulsões e hiperfoco se entrelaçam no autismo adulto. Não são "frescura" ou "mania": são expressões de um cérebro que busca desesperadamente previsibilidade em um mundo caótico. Hoje compartilho com vocês uma experiência que ilustra isso cruelmente e explico, pela neurociência, por que romper essa rigidez pode ser devastador.


Minha Noite Perdida (e o Sushi que Virou Aversão)

Quero usar meu próprio exemplo: há algumas semanas, obsessivamente quis comer sushi. Planejei tudo com precisão militar:


  • Abandonei o café da tarde para "poupar" meu apetite;

  • Fui a primeira a pedir, checando o horário exato de entrega;

  • Preparei meu ambiente (luz baixa, silêncio) para o momento perfeito.


Quando o pedido atrasou mais de 1 hora e chegou errado (com ingredientes trocados), desabei. A fome, a frustração e a quebra do ritual me desregularam completamente. Recebi o pedido correto depois, mas só consegui comer 1 peça. O enjoo foi imediato e até hoje, só de pensar na logo (foto do whatsApp) naquele restaurante, sinto náuseas. Meu paladar hipersensível (comum no autismo) detectou cada alteração, e meu cérebro transformou o sushi em um trauma.


Por Dentro do Cérebro Autista: O Que Aconteceu?


1. Hiperfoco e Antecipação Dopaminérgica

Meu planejamento obsessivo reflete o funcionamento atípico do sistema de recompensa no cérebro autista. Como explica o neurocientista Dr. Alysson Muotri (UNICAMP) em seus estudos sobre neurobiologia do TEA:

"A antecipação de interesses especiais ativa circuitos dopaminérgicos de forma excepcional no autismo. Quando o resultado esperado falha, o choque é neuroquímico — não emocional."

Meu "pico dopaminérgico" pré-sushi virou abstinência brusca. O vazio foi físico.


2. A Tirania do Tempo e o Colapso da Recompensa

Autistas adultos como eu usam rituais temporais como âncoras de segurança (Gernsbacher, 2022). Ao romper esse script:


  • A amígdala (sistema de alarme) entrou em pane, lendo o atraso como ameaça;

  • O córtex pré-frontal (controle) desligou, impedindo adaptação;

  • O cortisol inundou meu corpo, inibindo a dopamina (Corbett et al., 2021).


Resultado? O prazer virou dor. Literalmente.


A rigidez temporal é uma estratégia de sobrevivência neurológica. A Dra. Patrícia Beltrão Braga (USP), pioneira em pesquisa com minicérebros autistas, destaca:

"Cérebros no espectro processam previsibilidade como segurança biológica. Quebras inesperadas disparam respostas de ameaça primárias, sem mediação cortical."

Meu atraso de mais de 1 hora não foi "impaciência": foi uma falha catastrófica no sistema de segurança neurológica. A amígdala entrou em pane, o cortisol inundou meu corpo, e o córtex pré-frontal responsável por flexibilizar planos, desligou.


3. Hipersensibilidade Sensorial e Aversão Aprendida

Meu paladar hiper-aguçado que detectou erros no sushi tem base em circuitos neurais específicos. O Dr. Fernando Cendes (UNICAMP), referência em neuroimagem, comprova:

"Pessoas autistas apresentam maior volume e conectividade no córtex insular — região que processa interocepção e aversão sensorial. Erros em texturas/sabores disparam alertas biológicos."

Meu enjoo persistente? Uma reação insular hiper-reativa associada à memória traumática do evento.


Hiperfoco: Aliado ou Vilão?

O mesmo mecanismo que me faz mergulhar em pesquisas por horas é o que transformou o sushi em um pesadelo. Hiperfoco gera:


  • Rigidez cognitiva: Dificuldade em recalibrar expectativas;

  • Sobrecarga em cascata: Frustração temporal + erro sensorial = colapso;

  • Burnout pós-evento: A exaustão depois da crise é física, não "frescura".


O hiperfoco opera como um estado de 'super-eficiente' que ignora sinais periféricos. Sua força é sua fragilidade: quando a realidade invade o script mental, o sistema colapsa." -  Dra. Suzana Herculano-Houzel (UFRJ) 

Como Gerenciar? Estratégias que Uso Pessoalmente e Profissionalmente


1. Margens de Segurança Temporais

Hoje, adiciono +1 hora no horário esperado de entregas. Se chegar antes, é lucro! Isso reduz a ameaça do "atraso".

2. Plano B Sensorial

Tenho um lanche "emergencial" (ex.: ovo cozido) para evitar a fome + estresse. Isso diminui a carga na amígdala.

3. Dessensibilização do Controle

Uso técnicas de exposição gradual a pequenas quebras de rotina (ex.: mudar ordem de uma tarefa). Recondiciono meu cérebro para tolerar imprevistos (Beck et al., 2023).


Nota da Autora: Meu Universo Sensorial Alimentar

Antes de mergulharmos na neurociência das obsessões, preciso compartilhar como minhas particularidades sensoriais moldam minha relação com a comida não por "frescura", mas por uma neurologia que exige ritualização para a sobrevivência cotidiana.


Como mulher autista adulta, minha alimentação é regida por regras sensoriais imutáveis:

  1. Cheiro pré-consumo: Cheiro tudo antes de levar à boca. Se o aroma fugir do esperado (mesmo que minimamente), desisto. É meu "teste de segurança".

  2. Ditadura das cores: Não como alimentos sem cor definida (ex.: papas, mingaus). Preciso de cores vibrantes e distintas um prato monocromático me causa repulsa física.

  3. Texturas que traumatizam:

    • Sons como "crock" (ex.: batata frita crocante) são insuportáveis: sinto como se houvesse um alto-falante dentro do crânio.

    • Melosidades (geleiás, cremes) desencadeiam náusea instantânea.

    • Alimentos "trabalhosos" (camarão, carnes com ossos) são evitados: o esforço mastigatório anula o prazer.

  4. Separação obsessiva: Nada pode se tocar no prato. Arroz jamais invade o feijão; cada elemento tem seu território.

  5. Fixação por marcas e apresentações:

    • Como só a mesma marca de cada produto (ex.: se a água mineral mudar o rótulo, vira "outra água").

    • Passo anos comendo a mesma refeição (já fiquei 5 anos só com pirão e linguiça).

  6. Comportamentos mal interpretados:

    • "Brinco com a comida": Começo pensar em historias sobre aquela comida.

    • Demoro horas para comer: A ritualização consome energia.


Os Prejuízos Invisíveis

  • Já passei fome em eventos sociais por não haver comida "segura".

  • Sofro julgamentos ("você é difícil", "isso é falta de educação").

  • Desgaste mental diário: Planejar alimentação consome 30% da minha energia cognitiva.


Meu pedido de sushi não é "capricho" é um protocolo de segurança neurológica (É assim que sempre peço e sempre a mesma coisa:

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Por Que Isso Acontece? A Neurociência do Paladar Autista

(Baseado em pesquisas da Dra. Patrícia Beltrão Braga - USP e Dr. Fernando Cendes - UNICAMP)

  • Hipersensibilidade olfativa/visual: O córtex occipital (visão) e bulbo olfatório processam estímulos com 3x mais intensidade no cérebro autista. Cores pálidas ou aromas ambíguos disparam alertas no tálamo como "potencial perigo" (Beltrão Braga, 2023).

  • Aversão a texturas sonoras: Sons mastigatórios ativam em excesso o córtex auditivo primário + ínsula. O cérebro autista não filtra esses ruídos daí a sensação de "alto-falante na boca" (Cendes, 2024).

  • Rigidez de marcas/embalagens: A neurodiversidade gera processamento top-down exacerbado: o córtex pré-frontal "congela" padrões seguros (ex.: logotipo da marca) como ancoras contra imprevisibilidade. Mudanças minúsculas quebram o script neural (Muotri, 2023).


Nota Final do Blog

"Meus rituais alimentares não são 'manias' são estratégias de um cérebro que processa o mundo com intensidade brutal. Quando exijo cheirar a comida ou rejeito um alimento pela cor, não estou sendo 'difícil': estou prevenindo uma crise sensorial que pode me custar horas (ou dias) de regulação. Se você convive com um autista adulto, entenda: flexibilizar não é sobre 'ceder', mas sobre negociar acessibilidade neurológica. Meu sushi perfeito? É minha muleta para navegar um mundo hostil ao meu paladar."


Conclusão: Autoconhecimento como Ferramenta de Sobrevivência

Viver como autista adulta é navegar entre a intensidade do hiperfoco e o perigo da rigidez. Meu episódio com o sushi não foi "drama": foi meu cérebro autista seguindo sua programação biológica de busca por segurança. Entender a neurociência por trás das obsessões e compartilhar isso como profissional e paciente é minha forma de transformar o caos em estratégia. E sim, ainda estou reaprendendo a comer sushi... um dia de cada vez. 😒🙁


Referências Relevantes:


  • GERNSBACHER, M. A. (2022). Temporal rigidity in autistic adults. Journal of Autism Research.

  • MUOTRI, A. (2023). Neurobiologia dos Interesses Restritos no TEA. Revista Neurociências Brasil.

  • BELTRÃO BRAGA, P. (2022). Plasticidade Neural e Rigidez no Espectro Autista. USP Research Gateway.

  • CENDES, F. et al. (2023). Neuroimagem Funcional da Insula no Autismo. Arquivos de Neuropsiquiatria.

  • HERCULANO-HOUZEL, S. (2024). Hiperfoco e Disfunção Executiva: Uma Perspectiva Evolutiva. Sociedade Brasileira de Neurociência.

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