Wandinha Addams e o Autismo Feminino: Uma Análise Neuropsicológica
- Neuropsicológa Aline Vicente
- 4 de set.
- 6 min de leitura

Olá, bem-vindos ao meu cantinho. Sou a Aline Vicente, neuropsicóloga, e hoje quero convidar vocês para uma reflexão que une minha paixão de infância com minha profissão: a personagem Wandinha Addams. Assim como muitos de vocês, cresci amando a família mais sombria e autêntica da cultura pop. Lembro perfeitamente da emoção de abrir o salgadinho Elma Chips na esperança de completar minha coleção de brindes dos Addams. Havia algo naquela família que ia além do humor negro; havia uma celebração da diferença.
A nova série da Netflix, Wandinha, deu uma profundidade incrível à personagem-título, permitindo-nos enxergar nuances que sempre estiveram lá, mas que agora brilham com nova intensidade. E, ao assisti-la, não pude evitar conectar suas particularidades aos critérios do Transtorno do Espectro Autista (TEA), especialmente na apresentação muitas vezes subtil e mascarada do autismo em meninas e mulheres.
É crucial deixar claro desde já: esta é uma análise educativa e conjectural, baseada em um personagem fictício. O objetivo não é dar um "diagnóstico" à Wandinha, mas usar sua riqueza narrativa para ilustrar e educar sobre a diversidade de manifestações do neurodesenvolvimento, combatendo estereótipos e promovendo a compreensão.
Vamos explorar os critérios do DSM-5 (o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) um a um, através dos olhos da Wandinha.
Critério A: Déficits Persistentes na Comunicação Social e na Interação Social
Este critério vai muito além de simplesmente "não querer falar com pessoas". Ele se desdobra em três aspectos fundamentais, e a Wandinha é um arquétipo perfeito para ilustrá-los.
A.1. Déficits na reciprocidade socioemocional: Wandinha constantemente demonstra uma abordagem social anormal. Ela não entende (e muitas vezes desdenha) as regras não escritas da interação social "típica". Seus cumprimentos são literais e abruptos ("Estou de luto pela minha família"), ela não engaja em "conversa fiada" e frequentemente faz comentários considerados socialmente inadequados, por serem extremamente honestos e literais. O compartilhamento de emoções é um território particularmente difícil. Ela raramente expressa empatia da forma convencional esperada. Sua preocupação em resolver mistérios e crimes não é para trazer conforto emocional às pessoas, mas uma obsessão por justiça e ordem lógica. Quando tenta confortar alguém, como a coleginha de quarto Enid, o resultado é desastroso e estranho, pois falta a ela o script social natural para essas situações.
A.2. Déficits nos comportamentos comunicativos não verbais: Este é um dos traços mais marcantes da personagem. Seu contato visual é intenso, fixo e desconfortante para os outros uma característica comum no autismo, que pode variar da aversão ao contato visual a um olhar excessivamente penetrante. Sua linguagem corporal é rígida e contida; raramente vemos gestos expansivos ou expressões faciais exuberantes. Sua expressão facial é predominantemente plana e séria, que é sua marca registrada. Mesmo em momentos de alegria ou triunfo, sua expressão é sutil, quase imperceptível para quem não a conhece profundamente. Sua comunicação verbal e não verbal são perfeitamente integradas, mas de uma forma que é idiossincrática: sua fala monotônica e sua postura imóvel transmitem uma mensagem clara de desdém e intelectualidade superior.
A.3. Déficits para desenvolver, manter e compreender relacionamentos: Wandinha chega à Escola Nunca Mais sem qualquer interesse inicial em fazer amigos. Ela não vê valor na socialização frívola. Seu relacionamento com Enid é um estudo magnífico de como esses déficits se manifestam e podem, com o tempo, ser trabalhados. Ela inicialmente não compreende a necessidade de Enid por cores, música pop e contato físico. Ela tem extrema dificuldade em ajustar seu comportamento para se adequar ao contexto do internato, recusando-se a participar de atividades que considera irrelevantes ou estúpidas. Seu jeito de "brincar" ou se divertir é radicalmente diferente (dissecar um peixe, treinar com um manequim para esfaquear, investigar cadáveres). Aos poucos, ela desenvolve um vínculo com Tyler e Xavier, mas esses relacionamentos são cheios de mal-entendidos sociais, leituras literais de intenções e uma dificuldade enorme em navegar as complexidades do flerte e da amizade.
Critério B: Padrões Restritos e Repetitivos de Comportamento, Interesses ou Atividades
Aqui, a Wandinha brilha ou melhor, sombreia com toda a sua intensidade. Precisamos de pelo menos dois dos quatro subitens, e ela exemplifica vários.
B.1. Movimentos motores, uso de objetos ou fala estereotipados ou repetitivos: A fala da Wandinha é repleta de frases idiossincráticas e um vocabulário arcaico e formal ("É a vida", e ela fala coisas e faz referências a Edgar Allan Poe e a livros de terror e suspense). Sua maneira de falar é, em si, um comportamento repetitivo e estereotipado sempre monótona, precisa e carregada de um cinismo característico. Seus movimentos são contidos, mas quando ela se engaja em sua paixão (como tocar cello ou esgrimir), vemos uma repetição ritualística e metódica dessas ações.
B.4. Hiper ou hiporreatividade a estímulos sensoriais: Este é um critério extremamente significativo para a personagem e crucial para o autismo feminino. Wandinha apresenta:
Hiporreatividade à dor: Ela demonstra uma aparente indiferença à dor física em várias situações. Sua tolerância é notavelmente alta.
Hiper-reatividade a estímulos sensoriais específicos: Este é o ponto mais interessante! A cor, a música pop e a textura "excessiva" do mundo ao seu redor são fontes de grande aversão para ela. O lado colorido e caótico do quarto que divide com Enid é uma agressão sensorial. Ela busca constantemente ambientes escuros, silenciosos e ordenados para regular seu sistema sensorial. Isso não é apenas uma "preferência gótica"; é uma necessidade neurológica de controlar estímulos aversivos para evitar a sobrecarga sensorial, uma experiencia comum no TEA.
Interesse incomum por aspectos sensoriais: Seu fascínio pelo macabro cheiros de decomposição, visualização de cadáveres, texturas de instrumentos de tortura pode ser interpretado como um interesse incomum por aspectos sensoriais do ambiente que a maioria das pessoas encontraria repulsivos.
Critérios C, D e E: O Contexto Essencial
C. Os sintomas estão presentes precocemente: A série deixa claro que Wandinha sempre foi assim. Os flashbacks de sua infância mostram as mesmas dificuldades de interação (como seus problemas em escolas normais) e os mesmos interesses restritos e repetitivos (treinar para ser uma assassina, fazer experiências com peixes).
D. Prejuízo clinicamente significativo: Seu comportamento causa prejuízo significativo em seu funcionamento social. Ela é expulsa de múltiplas escolas, é constantemente mal-interpretada, e suas investigações solitárias a colocam em conflito direto com quase todos ao seu redor, prejudicando seus relacionamentos incipientes.
E. Não é melhor explicado por outra condição: Na narrativa, suas características são intrínsecas à sua persona e não são atribuídas a uma deficiência intelectual ou outro transtorno.
A Chave: O Autismo Feminino e a Mascaração (Masking)
O que torna a Wandinha um retrato tão potente, especialmente para o autismo feminino, é que ela não mascara seus traços. A maioria das meninas no espectro aprende a camuflar suas dificuldades sociais para se adequar um fenômeno exaustivo conhecido como masking ou camuflagem. Elas forçam contato visual, memorizam scripts sociais, imitam outras meninas para fazer amigos, suportam o desconforto sensorial em silêncio.
Wandinha se recusa veementemente a fazer isso. Ela força o mundo a se adaptar a ela, e não o contrário. Nesse sentido, ela é um ideal de autenticidade neurodivergente. A Escola Nunca Mais, por ser um lugar para excluídos, é, na verdade, uma metáfora poderosa para um ambiente que (em teoria) aceita a neurodiversidade. A jornada dela não é para se tornar "normal", mas para aprender a navegar seu mundo sem abandonar quem ela é talvez até fazendo uma ou duas conexões genuínas no caminho.
Ela, assim como a Lisa Simpson (outra personagem que amo), é uma intelectual, justiceira, intensa em seus interesses e socialmente estranha. Elas nos mostram que o autismo não é um déficit, mas uma forma diferente de ser. Uma forma que pode ser incrivelmente poderosa, criativa e focada.
Concluindo, Wandinha Addams é um personagem que ressoa profundamente com tantos de nós, neurotípicos e neurodivergentes, porque ela encapsula a luta universal pela autenticidade.
Através de sua lente sombria e literal, podemos enxergar com mais clareza a beleza complexa da mente autista. Ela é um farol para todos que já se sentiram deslocados, lembrando-nos que nossa singularidade não é uma falha, mas nossa maior força.
Espero que esta análise tenha sido esclarecedora e interessante! Se este tema tocou você de alguma forma, sinta-se sempre à vontade para compartilhar suas reflexões.
Com carinho,
Aline Vicente Psicóloga | CRP 12/20020 Neuropsicóloga | Autista, TDAH e Altas Habilidades/Superdotação.
🌻 Compreendendo o mundo através de múltiplas lentes e apoiando você nessa jornada.
Comentários