O Silêncio que Fala: Ser Mulher Autista, a Solidão Escolhida e os Dilemas da Maternidade
- Neuropsicológa Aline Vicente

- 28 de ago.
- 5 min de leitura

Eu, Aline, não sou apenas uma neuropsicóloga que aplica avaliações. Sou uma ouvinte de histórias. E nas horas que passam dentro do meu consultório, entre questionários e testes, escuto as verdades mais profundas e muitas vezes silenciadas de mulheres incríveis. Mulheres autistas.
Uma tecla que toca constantemente, um fio condutor de quase todos os relatos, é a imensa, profunda e não negociável necessidade de solidão. Não uma solidão triste, abandonada, como o mundo neurotípico costuma pintar. Mas uma solidão que é refúgio, recarga, lar. É o ato de, finalmente, desligar os ruídos do mundo e simplesmente… existir dentro da própria mente.
E é sobre essa preferência, esse amor por habitar o próprio mundo interior, que quero falar hoje. E, principalmente, sobre o peso esmagador da incompreensão que recai sobre a mulher autista que ousa priorizar essa necessidade.
O Casulo Necessário: Por Que Precisamos Estar Sós
Para muitas de nós, autistas, o mundo é como um concerto de rock onde todos têm a partitura, menos você. Os sons são altos demais, as luzes fortes demais, as conversas são uma teia de insinuações e regras sociais não escritas. Cada interação, por mais breve que seja, consome uma energia mental colossal. É um processo ativo e exaustivo de decodificação.
A solidão, então, não é um luxo; é uma estratégia de sobrevivência. É o momento em que podemos desligar os decodificadores. É quando o barulho cessa, a pressão social se dissipa e podemos nos reconectar com nossos pensamentos, nossos interesses específicos (os famosos special interests), nossa própria calma. Nesse espaço, não precisamos performar.
Somos simplesmente nós mesmas. Esse "estar só" é onde nos reencontramos e recarregamos as energias para, se necessário, voltar ao mundo exterior.
A Incompreensão que Machuca: "Por que você é tão antissocial?"
A sociedade venera a extroversão. Quem é quieto é visto como arrogante, triste, deprimido ou desinteressado. Para a mulher, a expectativa é ainda maior: somos ensinadas a ser cuidadoras, sociáveis, o coração da família, sempre disponíveis emocionalmente.
Quando uma mulher autista busca sua solidão, ela quebra brutalmente essa expectativa. E aí começa o sofrimento:
Da família: "Por que você sempre some? Não gosta da nossa companhia?"
Dos amigos: "Ela é esnobe, sempre cancela nossos programas."
Do parceiro (a): "Você não me ama? Prefere ficar sozinha do que comigo?"
Essas frases não são apenas perguntas; são acusações. Elas transformam uma necessidade neurológica legítima em um defeito de caráter. E o pior é que, muitas vezes, acreditamos nisso.
Começamos a nos forçar a socializar, a interagir, a estar "presentes" o tempo todo, até o ponto da exaustão total, da overload (sobrecarga) e do burnout.
O Dilema da Mãe Autista: O Amor que Esgota
É aqui que a dor atinge um nível de complexidade imenso. Em meus atendimentos, ouço relatos que partem o coração de mães autistas.
Elas amam seus filhos com uma intensidade avassaladora. Não há dúvidas sobre esse amor. Mas a demanda constante da maternidade é, por natureza, oposto à sua necessidade de solidão e controle sensorial.
Uma criança é imprevisível. Grita, ri alto, precisa de toque constante, faz perguntas sem fim, quebra rotinas. Para o cérebro autista, isso é como ser bombardeada 24 horas por dia sem trégua. O amor é infinito, mas a capacidade energética não é.
Elas se veem obrigadas a se esgotar para performar uma maternidade "aceitável", uma maternidade que não as afaste dos próprios filhos. Elas temem que, ao buscarem o silêncio de que precisam, sejam julgadas como mães ruins, egoístas, frias. Elas se sacrificam no altar da expectativa social, e o preço é a sua saúde mental. A culpa as consome: culpa por precisar de uma pausa, culpa por não aguentar brincar por horas, culpa por desejar, mesmo que por cinco minutos, o silêncio absoluto.
A Escolha de Não Ser Mãe: A Autopreservação como Ato de Sabedoria
Do outro lado desse espectro, estão as mulheres autistas que, com uma lucidez brutal e corajosa, muitas vezes sobretudo quando encontram ambientes que lhes permitem escolhas decidem não seguir o caminho da maternidade. Importante destacar que, independentemente de serem ou não autistas, existem mulheres que acabam sendo condicionadas à gravidez, mesmo sem essa escolha partir delas. No caso das mulheres autistas, essa vulnerabilidade pode ser ainda maior, a depender do nível de suporte de que dispõem, do coeficiente intelectual, da orientação familiar e social, bem como do ambiente em que estão inseridas.
Elas não fazem essa escolha por não serem capazes de amar. Muito pelo contrário. Elas fazem essa escolha por um profundo autoconhecimento e um ato de amor próprio. Elas conseguem prever, com clareza assustadora, que a demanda sensorial e social constante da maternidade as levaria a um colapso.
Elas escolhem honrar sua necessidade de solidão, seu mundo interior, seu ritmo. Escolhem preservar a paz que conquistaram a duras penas. E, infelizmente, essa escolha também é alvo de uma incompreensão profunda. São chamadas de egoístas, infantis, "frias". A pressão social e familiar para que se tornem mães é uma violência constante, que questiona sua própria condição de mulher.
Dois Lados da Mesma Moeda: Respeito
Tanto a mãe autista que luta diariamente para conciliar seu amor pelos filhos com suas necessidades neurológicas, quanto a mulher autista que escolhe não ser mãe para preservar seu bem-estar, estão, no fundo, buscando a mesma coisa: viver de uma forma que seja autêntica e sustentável para elas.
A questão central não é a maternidade em si. É o respeito pela forma diferente de estar no mundo.
Precisamos, como sociedade, como família, como amigos, parar de ver a solidão como uma ofensa e começar a vê-la como uma linguagem de amor próprio. Precisamos entender que uma mulher que se recolhe não está rejeitando ninguém; ela está se cuidando para poder, quem sabe, amar melhor os outros quando estiver reposta.
Para a mãe autista: você não é uma mãe ruim por precisar de uma pausa. Buscar apoio, criar rotinas claras, negociar momentos de solitude com seu parceiro (a) e, principalmente, perdoar-se, não é egoísmo. É garantia de que você poderá estar presente para seu filho de uma forma mais plena e verdadeira.
Para a mulher que não deseja ser mãe: sua escolha é válida e legítima. Respeitar seus limites é um ato de coragem e autenticidade. Da mesma forma, para a mulher autista que deseja ser mãe essa decisão também é válida e legítima. Apenas quem habita a própria pele pode compreender a dimensão de suas escolhas.
O meu apelo, como profissional e como mulher que ouve essas histórias, é por mais empatia. Menos julgamento. Mais escuta. Precisamos criar um mundo onde o casulo seja respeitado, porque é de dentro dele que muitas de nós, autistas, conseguimos encontrar a força para voar do nosso próprio jeito, no nosso próprio tempo.
Com carinho,
Psicóloga e mulher Autista Aline Vicente - CRP 12/20020




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