Quando a Máscara Quebra: Sobre o Peso Invisível e a Força de Ser Quem Sou
- Neuropsicológa Aline Vicente

- 5 de set.
- 4 min de leitura
Sempre acreditei que a verdadeira conexão começa na vulnerabilidade. Por trás do jaleco, dos laudos e dos termos técnicos, há uma mulher que também sente, que também luta e que, acima de tudo, entende porque escolhi esta profissão: para ver o ser humano por trás do diagnóstico.
Hoje, resolvi compartilhar com vocês um pedaço da minha alma, uma composição que nasceu de um lugar muito verdadeiro dentro de mim. Escrevi esta música, "This Time I Broke", em um daqueles dias em que o peso de sustentar uma existência neurodivergente em um mundo neurotípico simplesmente ficou pesado demais. E resolvi compartilhar esta parte sensível porque sei, intimamente, que não há um alguém tão forte que não caia.
"Every day I put on the light, Play the role of someone strong..." (Todos os dias eu acendo a luz, Faço o papel de alguém forte...)
Quantas de nós, autistas, não nos reconhecemos nesses versos? "Colocar a luz" é a metáfora perfeita para o ato diário de mascaramento. É o esforço cognitivo monumental para regular tom de voz, para manter contato visual que não seja avassalador, para decifrar subtextos sociais em tempo real, para conter um estímulo ou disfarçar uma sobrecarga sensorial que ameaça nos desconectar do mundo. Interpretamos, todos os dias, o papel de "alguém forte", de alguém que consegue.
Para muitos, nossas dores são invisíveis. Um suspiro mais longo é visto como drama. A necessidade de solidão após um evento social é interpretada como antipatia. Uma crise de ansiedade em um ambiente barulhento pode ser lida como fraqueza. São coisas "simples", "triviais" para quem olha de fora, mas para quem carrega a sustentação de um esforço diário para ser um alguém, isso é a estrutura que mantém o teto da sua existência.
E então, a máscara inevitavelmente escorrega.
"But when the mask slips off my face, I fall apart, I lose my place... (Mas quando a máscara cai do meu rosto, eu desmorono, perco meu lugar...)"
Quando cai, não é um momento de drama. É o colapso de um sistema inteiro. É a mente, exausta de traduzir um mundo que não foi feito para ela, finalmente desligar. É a sensação visceral de ser estilhaçada, como diz o refrão. Não é apenas um dia ruim; é a culminação de milhares de pequenos esforços não reconhecidos, de batalhas silenciosas travadas atrás de um sorriso esperançoso.
"I’ve fought, I’ve tried, But I can’t fake the fight tonight. (Eu lutei, eu tentei, Mas não consigo fingir lutar esta noite.)"
Essa é a linha que mais me define nesses momentos. Não é sobre desistir. É sobre a honestidade brutal de admitir que, naquela noite, a energia para fingir, para performar, simplesmente se esgotou. É a coragem de não ser forte, por uma vez.
Escrevi esse trecho pensando em todos que já se sentiram assim:
"Maybe from ashes I’ll rise, But right now I’m lost in the night. Even the strongest can fall, Even the brightest can crawl… (Talvez eu renasça das cinzas, Mas agora estou perdido na noite. Até os mais fortes podem cair, Até os mais brilhantes podem rastejar...)"
Sim, das cinzas podemos e vamos nos reerguer. A resiliência é nossa companheira. Mas é fundamental permitirmo-nos o momento de estar perdidas na escuridão. Validar nossa própria dor. Reconhecer que cair, para nós, não é um fracasso. É uma resposta humana a um cansaço profundo e real.
Compartilho isso não para buscar pena, mas para oferecer entendimento. Se você é neurodivergente e se identifica com esta música, saiba que você não está sozinho na sua exaustão. Sua luta é válida e real.
E se você é um familiar, um amigo ou um cônjuge de alguém no espectro, espero que esta janela para o meu mundo interior ajude a entender: quando temos um colapso, não é sobre você. É sobre o cansaço acumulado de tentar navegar um oceano em uma jangada, enquanto todos à volta parecem ter um navio. A sua paciência, o seu silêncio acolhedor, a sua tentativa de entender sem julgar isso sim é a âncora que nos permite, depois de quebradas, nos juntarmos novamente.
Porque sim, desta vez eu quebrei. Muitas vezes já quebrei. E me levantei. E provavelmente quebrarei. Mas hoje, eu me permito estar quebrada. E amanhã, verei que mesmo com cicatrizes, eu me reconstruo.
E talvez, só talvez, seja nas nossas rachaduras que a luz de dentro finalmente consiga brilhar para fora, sem precisar ser "ligada" forçosamente.
Com carinho e verdade,
Aline Vicente. Neuropsicóloga | Mulher Autista
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Tradução da música:
Dessa Vez Quebrei
(Verso 1)
Todo dia eu visto a luz,
Finjo ser alguém tão forte.
Coração de fé, sorriso azul,
Quem carrega o mundo e sua sorte.
Mas quando a máscara cai de mim,
Me perco inteira, chego ao fim,
E os pedaços pelo chão
São tudo o que eu guardava então.
(Pré-Refrão)
Eu sei, a vida é altos e baixos,
Já estive aqui, já vi esses rastros…
Mas esse peso corta fundo,
E eu não consigo esconder do mundo.
(Refrão)
Dessa vez quebrei,
Não é só trinca, é estilhaço.
A esperança eu sei,
Parece não ter mais espaço.
Eu lutei, tentei,
Mas hoje eu não consigo mais.
Dessa vez quebrei…
Dessa vez quebrei.
(Verso 2)
Sonho até com o fim chegar,
Mas até isso parece longe.
Como se a vida fosse testar
Cada célula do meu horizonte.
Já tropecei, já desabei,
Mas nunca assim, como agora cai.
Não é só mais uma queda ao chão,
É como se eu perdesse o coração.
(Pré-Refrão)
Eu sei, a vida é altos e baixos,
Mas essa tempestade deixa rastros…
As rachaduras vão além,
E ninguém vê de onde vem.
(Refrão)
Dessa vez quebrei,
Não é só trinca, é estilhaço.
A esperança eu sei,
Parece não ter mais espaço.
Eu lutei, tentei,
Mas hoje eu não consigo mais.
Dessa vez quebrei…
Dessa vez quebrei.
(Ponte)
Talvez das cinzas eu vá renascer,
Mas agora só sei me perder.
Até os fortes sabem cair,
Até a luz pode se apagar aqui.
(Refrão Final)
Dessa vez quebrei,
Não é só trinca, é estilhaço.
A esperança eu sei,
Parece não ter mais espaço.
Eu lutei, tentei,
Mas hoje eu não consigo mais.
Dessa vez quebrei…
Dessa vez quebrei.




Teríamos um mundo melhor com mais pessoas iluminadas (neurodivergente) como você Aline.