O Martelo, o Prego e a Melodia da Consciência: Reflexões sobre Ética, Diagnóstico e a Responsabilidade do Ofício
- Neuropsicológa Aline Vicente
- 1 de set.
- 4 min de leitura

Às vezes, a mais profunda sabedoria nos encontra nos lugares mais inesperados. Foi durante um momento de descontração, assistindo à série jurídica Além do Direito na Netflix, que uma frase ecoou na sala e, em seguida, atravessou-me como um dardo preciso: "Pra quem tem o martelo, qualquer coisa é prego."
A fala, proferida em um contexto de embate legal, é uma crítica mordaz ao reducionismo, à visão de túnel que instrumentaliza o mundo. No universo do Direito, ela expõe um paradoxo aterrador: a lei, criada para ser a guardiã da ordem, pode se tornar uma arma perigosa quando manuseada por mãos sem escrúpulos, que forçam a realidade a se encaixar em seus argumentos. Uma terra sem lei é o caos, mas uma lei sem sabedoria é uma tirania disfarçada.
E, naquele instante, meu mundo – o mundo da Neuropsicologia, da saúde mental, da clínica – não apenas entendeu a metáfora, mas reconheceu nela um espelho.
A Orquestra da Mente: Códigos, Cordas e Ressonâncias
Pare por um momento e pense em um instrumento musical, tal como um violão ou um piano. Suas cordas, quando afinadas e tocadas com técnica e sensibilidade, são capazes de produzir harmonias complexas e comoventes. Elas não são a música em si, mas a sua condição de possibilidade. Agora, imagine que cada uma dessas cordas é um princípio ético, um código de conduta, uma categoria diagnóstica do DSM-5-TR ou da CID-11.
Esses manuais, assim como os códigos jurídicos, são tentativas monumentais de organizar um caos aparente. Eles nomeiam padrões, criam linguagens comuns e nos oferecem um mapa para navegar a complexidade infinita da mente humana. São ferramentas preciosas, indispensáveis ao nosso ofício. Mas eis o perigo: o que acontece quando confundimos o mapa com o território? Quando começamos a ver não a pessoa diante de nós, com sua história única e intricada, mas apenas um conjunto de sintomas que se encaixam ou que nós forçamos a se encaixar em uma categoria?
Quando o Martelo é o DSM: A Tentação do Reducionismo
A frase da série ganha uma dimensão visceral em meu campo. "Pra quem só sabe usar o martelo do TDAH, toda criança inquieta é um prego." "Pra quem carrega o martelo do Transtorno de Personalidade Borderline, toda dor relacional intensa é um prego." "Pra quem carrega o martelo do Transtorno do Espectro Autista, todo interesse restrito e dificuldade socias é um prego."
É aí que a metáfora se torna uma verdade cortante. Nós, profissionais da saúde mental, carregamos martelos poderosos. São os nossos diagnósticos, nossas hipóteses, nossas interpretações. E possuímos uma imensa responsabilidade sobre qual martelo escolhemos, com que força golpeamos e para qual finalidade.
A busca por um diagnóstico não pode ser uma corrida para encontrar um nome que encerre a questão. Deve ser uma investigação compassiva para entender uma vida. Se não buscamos conhecimento continuamente, se não nos debruçamos sobre a literatura, se não aprimoramos nossa escuta e nossa técnica, corremos o risco gravíssimo de simplificar o irremediavelmente complexo. Podemos "martelar" um rótulo em alguém que carregará aquilo para sempre, com todas as implicações de autoimagem, tratamento e socialização que um diagnóstico acarreta.
Podemos, literalmente, tirar a vida de alguém do seu ritmo natural. Um diagnóstico incorreto ou precipitado é como um músico destrambelhado desafinando todas as cordas de um instrumento delicado. As consequências podem ser desastrosas: medicalização desnecessária, estigmatização, caminhos terapêuticos equivocados e, o pior de tudo, a invisibilização da verdadeira pessoa por trás do "prego" que nós mesmos criamos.
A Vitória da Perspectiva Ética
Além do Direito me lembrou que a vitória no tribunal, assim como na clínica, depende de uma perspectiva. Depende de como se lê a lei, de como se interpretam as evidências, de como se conta a história. A música final depende de quem a toca.
Nossa vitória como profissionais da saúde não é um laudo com um código impresso. Nossa vitória é a precisão do nosso olhar, a integridade da nossa conduta, a humildade de reconhecer os limites do nosso conhecimento e a coragem de dizer "não sei" e buscar supervisão. Nossa vitória é a melodia restaurada de uma vida que, entendida em sua complexidade, pôde encontrar um caminho de maior equilíbrio e significado.
A ética, portanto, não é um apêndice do nosso trabalho. Ela é a afinação constante das nossas cordas internas. É o que nos impede de sermos apenas técnicos do martelo e nos transforma em maestros em potencial da sinfonia humana complexa, por vezes dissonante, mas sempre merecedora de ser ouvida em sua totalidade.
Conclusão: Para Além do Martelo
A frase que me atravessou da ficção para a realidade foi um lembrete solene. Ela reforça que nosso maior instrumento de trabalho não é o teste neuropsicológico mais moderno, nem o manual diagnóstico mais atualizado. Nosso instrumento mais crucial é a consciência.
A consciência de que atrás de todo "caso" há um ser humano. A consciência de que nosso conhecimento é sempre provisório e deve ser constantemente desafiado. A consciência de que carregamos um martelo e que devemos ter a sabedoria para saber quando usá-lo, quando guardá-lo e, principalmente, quando substituí-lo por um afinador de piano, um pincel ou simplesmente por um ouvido atento e um coração aberto.
A terra sem lei é um caos. A clínica sem ética é uma violência. Que possamos sempre escolher tocar a melodia, e não apenas martelar o prego.
Com reflexão,
Psicóloga Aline Vicente Neuropsicóloga | CRP 12/20020.
Magnífico Aline!