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Funcionamento Atípico e Vivências Espirituais: Um Olhar Integrativo entre Jung e a Neurociência

Atualizado: 26 de ago.

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A perspectiva de Carl Gustav Jung sobre espiritualidade, quando relacionada ao funcionamento psíquico atípico, como nos casos de altas habilidades/superdotação e autismo, abre espaço para uma compreensão profunda e integradora da mente humana. A seguir, abordo essa questão sob três eixos interligados: abordagem junguiana, neurociência cognitiva e o papel do lobo parietal, articulando essas dimensões numa análise coerente e cientificamente fundamentada.


1. A Espiritualidade na Perspectiva Junguiana

Para Jung, espiritualidade não se restringe a religiosidade institucionalizada, mas refere-se a um movimento arquetípico interno de busca por sentido, totalidade e integração do self. É um dos aspectos fundamentais da individuação, o processo pelo qual a pessoa se torna quem ela verdadeiramente é, integrando aspectos conscientes e inconscientes da psique.

Jung observou que:


  • A experiência espiritual/autotranscendente é inerente à psique humana, sendo regulada por imagens arquetípicas como o "Velho Sábio", "Self", "Grande Mãe", entre outras.

  • Indivíduos com intensa vida interior, imaginação vívida e sensibilidade ampliada (características comuns em pessoas com altas habilidades ou em perfis neurodivergentes) têm maior predisposição para experiências de caráter simbólico, místico ou existencial.

  • O inconsciente coletivo, através dos arquétipos, se expressa com mais clareza em pessoas com maior permeabilidade psíquica, o que é frequentemente relatado em sujeitos com funcionamento cognitivo e sensorial atípico.


"A experiência do numinoso é a verdadeira terapia, e como tal está para além da razão. É a experiência de algo maior que o eu." (Jung, Memórias, Sonhos e Reflexões)
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2. Relação com Altas Habilidades, Superdotação e Autismo

Do ponto de vista da neuropsicologia do funcionamento superior e atípico, tanto a superdotação quanto os transtornos do espectro autista (TEA) compartilham certos traços que podem amplificar a experiência espiritual ou simbólica:


2.1. Altas Habilidades / Superdotação

  • Elevada capacidade de abstração, introspecção e metacognição.

  • Sensibilidade estética, existencial e ética acentuada.

  • Imaginação simbólica rica e intensa vida interior.

  • Predisposição à hiper-reflexão, o que pode abrir portas para experiências de tipo espiritual, místico ou filosófico desde a infância.


2.2. Autismo (TEA)

  • Percepção sensorial e cognitiva divergente e intensificada.

  • Processamento detalhista e profundo, inclusive de temas existenciais.

  • Capacidade de estabelecer conexões incomuns entre elementos do mundo.

  • Vivência do mundo interno como mais “real” ou significativo que o externo — fenômeno que Jung interpretaria como uma aproximação com o inconsciente coletivo e o mundo arquetípico.

Em ambos os casos, há maior permeabilidade simbólica e sensorial, o que favorece a vivência de estados alterados de consciência ou experiências transcendentais não-patológicas, quando bem integradas à personalidade.

3. O Lobo Parietal e a Espiritualidade na Neurociência

O lobo parietal, especialmente o lobo parietal superior direito, é uma das regiões mais diretamente associadas às experiências espirituais e místicas. Estudos de neuroimagem mostram que:


  • Durante experiências de meditação profunda ou sensação de dissolução do eu, há diminuição da atividade no lobo parietal posterior direito, sugerindo que essa região está envolvida na construção da noção de "limites do self".

  • Pessoas com maior ativação funcional no córtex parietal associativo apresentam maior capacidade de integrar informações sensoriais complexas — habilidade fortemente relacionada tanto à superdotação cognitiva quanto ao funcionamento autista de alto desempenho.


Além disso:

  • O lobo parietal participa da representação corporal e espacial, da integração multisensorial e da autoconsciência corporal e transcendente.

  • Em indivíduos com neurodivergências, essas funções podem estar hiper ou hipofuncionantes, gerando desde experiências de desconexão corporal até hipersensibilidade ao ambiente — aspectos que podem ser confundidos com experiências “espirituais” ou místicas espontâneas.


4. Integração: Jung, Neurodivergência e o Cérebro Espiritual

Dimensão

Funcionamento Atípico

Referência Junguiana

Base Neurocientífica

Imaginação Simbólica

Elevada (superdotados/autistas criativos)

Arquétipos emergindo do inconsciente

Ativação no DMN (default mode network)

Sensibilidade Sensorial

Ampliada (TEA, AHS)

Permeabilidade ao mundo inconsciente/simbólico

Lobo parietal + integração tálamo-cortical

Hiper-reflexividade

Presente (principalmente em superdotados)

Processo de individuação

Maior conectividade entre córtex pré-frontal e parietal

Dissolução de fronteiras do ego

Esporádica ou em estados alterados

Contato com o Self ou experiências numinosas

Desativação do lobo parietal posterior

5. Considerações Finais

A espiritualidade, na perspectiva junguiana, é parte fundamental da estrutura da psique, e não um fenômeno acessório. Indivíduos com altas habilidades, autismo ou outros funcionamentos atípicos apresentam uma disposição ampliada para a experiência simbólica e espiritual por possuírem:


  • Maior integração ou hiperatividade de redes neurais associadas ao pensamento abstrato e transcendência;

  • Maior sensibilidade perceptiva e afetiva;

  • Estruturas cognitivas que favorecem a metarreflexão, a autorregulação simbólica e a busca por sentido profundo da vida.


O lobo parietal, ao integrar as dimensões corporal, espacial e transcendente, atua como ponte entre o "eu" concreto e o "eu" simbólico, sendo uma estrutura central para compreender como o funcionamento neurodivergente pode ser também um portal para vivências espirituais ou de autotranscendência  desde que compreendidas e integradas, e não patologizadas.


Neuropsicóloga Aline Vicente CRP12/20020 - Especialista na abordagem Junguiana

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