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O Cansaço de Ser Demais: Quando a Capacidade de Fazer Tudo se Torna um Peso


Eu sou aquela pessoa que, para muitos, parece ter nascido com um manual de instruções embutido na mente. Talvez você já tenha me visto assim: a que sabe tudo, faz tudo, resolve tudo. Às vezes, até eu mesma me pego acreditando nessa narrativa. Na minha cabeça, não se trata de dom inato, mas de uma escolha: se não sei, aprendo. Basta pesquisar, dedicar horas, mergulhar no desconhecido até dominá-lo. Explorar o novo sempre foi meu combustível e, ao invés do "não consigo", meu mantra é "vou tentar".


Mas há um preço invisível nessa habilidade de transformar desafios em conquistas. Com o tempo, percebi que muitas pessoas se acomodam diante da frase "não sei fazer". Elas nem tentam. E, sem perceber, eu me tornei a muleta perfeita para essas situações. Ofereci ajuda antes mesmo de ser solicitada, assumi responsabilidades alheias, subtraí das outras a chance de aprenderem por si mesmas. Em nome da praticidade, ou talvez de uma empatia mal direcionada, acabei carregando fardos que não eram meus.


O Que Isso Tem a Ver Com Neurodivergência? Tudo.

Quando falamos de Autismo, Altas Habilidades ou Superdotação, há nuances que amplificam essa dinâmica. Por exemplo: a dificuldade em reconhecer limites. Enquanto outros param quando sentem cansaço, meu hiperfoco me mantém presa em um loop de "só mais uma etapa", "só mais um detalhe". É como se o cérebro ignorasse os sinais do corpo, alimentado pela satisfação imediata de desvendar algo novo.


Somam-se a isso a empatia exagerada e a sensibilidade intensa, características comuns em muitos neurodivergentes. Quando alguém expressa uma dificuldade, sinto-a como minha. A dor alheia ecoa dentro de mim, e a urgência em resolvê-la se mistura com uma culpa sutil: "Se eu posso ajudar, como não o faria?". O problema é que essa generosidade, quando não dosada, vira um poço sem fundo.


O Paradoxo da Humildade: "Isso Era Óbvio, Por Que Me Parabenizam?"

As pessoas costumam se surpreender com o que realizo, mas confesso: odeio ser elogiada por isso. Aplausos me incomodam, exposição me angustia. Porque, na minha percepção, tudo o que fiz foi lógico e acessível. "Qualquer um dedicaria horas estudando, testando, errando e refazendo", penso. Como agradecer por algo que considero simples?


Há dias em que invejo a ignorância seletiva de quem consegue dizer "não sei" e seguir em frente. Eu, porém, não desligo. Cada problema não resolvido fica girando na mente, cada pedido de ajuda vira uma missão pessoal. E assim, o acúmulo de "deveres autoimpostos" se transforma em saturação: cognitiva, emocional, física.


Saber Demais Pode Ser Uma Sentença

A autoexigência é uma armadilha silenciosa. Quanto mais sei, mais percebo o quanto não sei e mais me cobro para preencher essas lacunas. A neuropsicologia explica: cérebros com altas habilidades muitas vezes operam em um ritmo acelerado, processando informações de forma simultânea e profunda. O resultado? Fadiga mental crônica.


E aqui está o dilema: amo compartilhar conhecimento. Ajudar é parte de quem sou. Mas como distinguir quando estou contribuindo para o crescimento do outro e quando estou hospedando a jornada dele em mim?


Aprendendo a Escolher a Quem Servir

Hoje, aos poucos, aprendo a dosar minha entrega. Percebi que dizer "não" não é egoísmo, mas preservação. Que permitir que outros tropecem é, muitas vezes, o maior ato de empatia porque o erro também ensina. E que meu valor não está atrelado à minha produtividade ou à quantidade de problemas que resolvo.


Se você se identifica com esse cansaço de "ser demais", saiba que não está sozinho(a). Talvez, como eu, você precise relembrar-se diariamente: não é sua obrigação carregar o mundo nas costas. Nossas mentes brilhantes merecem descanso. Nossos corpos sensíveis merecem paz.


E nossa existência não precisa ser extraordinária para ser válida.


Aline Vicente Neuropsicóloga CRP 12/20020 | Especialista em Neurodivergência


Este texto é um convite à reflexão, não um diagnóstico. Se você se identifica com essas características, busque acompanhamento profissional para compreender suas singularidades.

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