O Cansaço de Ser Demais: Quando a Capacidade de Fazer Tudo se Torna um Peso
- Neuropsicológa Aline Vicente
- 9 de abr.
- 3 min de leitura

Eu sou aquela pessoa que, para muitos, parece ter nascido com um manual de instruções embutido na mente. Talvez você já tenha me visto assim: a que sabe tudo, faz tudo, resolve tudo. Às vezes, até eu mesma me pego acreditando nessa narrativa. Na minha cabeça, não se trata de dom inato, mas de uma escolha: se não sei, aprendo. Basta pesquisar, dedicar horas, mergulhar no desconhecido até dominá-lo. Explorar o novo sempre foi meu combustível e, ao invés do "não consigo", meu mantra é "vou tentar".
Mas há um preço invisível nessa habilidade de transformar desafios em conquistas. Com o tempo, percebi que muitas pessoas se acomodam diante da frase "não sei fazer". Elas nem tentam. E, sem perceber, eu me tornei a muleta perfeita para essas situações. Ofereci ajuda antes mesmo de ser solicitada, assumi responsabilidades alheias, subtraí das outras a chance de aprenderem por si mesmas. Em nome da praticidade, ou talvez de uma empatia mal direcionada, acabei carregando fardos que não eram meus.
O Que Isso Tem a Ver Com Neurodivergência? Tudo.
Quando falamos de Autismo, Altas Habilidades ou Superdotação, há nuances que amplificam essa dinâmica. Por exemplo: a dificuldade em reconhecer limites. Enquanto outros param quando sentem cansaço, meu hiperfoco me mantém presa em um loop de "só mais uma etapa", "só mais um detalhe". É como se o cérebro ignorasse os sinais do corpo, alimentado pela satisfação imediata de desvendar algo novo.
Somam-se a isso a empatia exagerada e a sensibilidade intensa, características comuns em muitos neurodivergentes. Quando alguém expressa uma dificuldade, sinto-a como minha. A dor alheia ecoa dentro de mim, e a urgência em resolvê-la se mistura com uma culpa sutil: "Se eu posso ajudar, como não o faria?". O problema é que essa generosidade, quando não dosada, vira um poço sem fundo.
O Paradoxo da Humildade: "Isso Era Óbvio, Por Que Me Parabenizam?"
As pessoas costumam se surpreender com o que realizo, mas confesso: odeio ser elogiada por isso. Aplausos me incomodam, exposição me angustia. Porque, na minha percepção, tudo o que fiz foi lógico e acessível. "Qualquer um dedicaria horas estudando, testando, errando e refazendo", penso. Como agradecer por algo que considero simples?
Há dias em que invejo a ignorância seletiva de quem consegue dizer "não sei" e seguir em frente. Eu, porém, não desligo. Cada problema não resolvido fica girando na mente, cada pedido de ajuda vira uma missão pessoal. E assim, o acúmulo de "deveres autoimpostos" se transforma em saturação: cognitiva, emocional, física.
Saber Demais Pode Ser Uma Sentença
A autoexigência é uma armadilha silenciosa. Quanto mais sei, mais percebo o quanto não sei e mais me cobro para preencher essas lacunas. A neuropsicologia explica: cérebros com altas habilidades muitas vezes operam em um ritmo acelerado, processando informações de forma simultânea e profunda. O resultado? Fadiga mental crônica.
E aqui está o dilema: amo compartilhar conhecimento. Ajudar é parte de quem sou. Mas como distinguir quando estou contribuindo para o crescimento do outro e quando estou hospedando a jornada dele em mim?
Aprendendo a Escolher a Quem Servir
Hoje, aos poucos, aprendo a dosar minha entrega. Percebi que dizer "não" não é egoísmo, mas preservação. Que permitir que outros tropecem é, muitas vezes, o maior ato de empatia porque o erro também ensina. E que meu valor não está atrelado à minha produtividade ou à quantidade de problemas que resolvo.
Se você se identifica com esse cansaço de "ser demais", saiba que não está sozinho(a). Talvez, como eu, você precise relembrar-se diariamente: não é sua obrigação carregar o mundo nas costas. Nossas mentes brilhantes merecem descanso. Nossos corpos sensíveis merecem paz.
E nossa existência não precisa ser extraordinária para ser válida.
Aline Vicente Neuropsicóloga CRP 12/20020 | Especialista em Neurodivergência
Este texto é um convite à reflexão, não um diagnóstico. Se você se identifica com essas características, busque acompanhamento profissional para compreender suas singularidades.
Comments