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Autismo e Menopausa: A Dupla Invisibilidade do Envelhecimento Feminino

Atualizado: 26 de ago.

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Nunca me esqueci da fala de uma paciente que, aos 52 anos, disse: "Aline, acho que estou desaparecendo, como se não restasse mais lugar para mim". Naquele momento, ela não se referia apenas às transformações físicas da menopausa. Ela falava da sobreposição de silêncios que carregava desde a infância, quando, sem saber, mascarava traços autistas para se encaixar. Agora, na maturidade, já sem a força de camuflar e com o corpo em transição hormonal, ela se via duplamente invisibilizada: como mulher e como autista. Esse relato não é isolado. Ele expressa uma realidade urgente e ainda pouco discutida: o encontro entre o envelhecimento feminino, a experiência do Transtorno do Espectro Autista (TEA) e os efeitos da menopausa.


Em uma sociedade que valoriza juventude, produtividade e normatividade, a mulher autista na meia-idade encontra-se, muitas vezes, num ponto cego das políticas públicas, dos serviços de saúde e da própria linguagem.

O Caso de Beatriz: Envelhecer com Autismo em um Mundo sem Apoio


Beatriz é uma mulher de 47 anos, autista e com dependência funcional, que depende quase totalmente do pai, seu cuidador principal, hoje com 81 anos. Ela não é verbal, precisa de auxílio para atividades básicas (como se vestir, comer e tomar banho) e sua rotina é restrita: durante a semana, frequenta uma instituição especializada, onde participa de oficinas terapêuticas; nos fins de semana, seus únicos momentos de lazer são passeios de carro com o pai ou o irmão e observar o mar da janela do apartamento da família.


Seu pai, Sr. Roberto, expressa angústias comuns a muitos cuidadores de adultos autistas:


  • Falta de autonomia: Beatriz não consegue realizar tarefas domésticas simples, como varrer, porque nunca teve oportunidades estruturadas para aprender.

  • Isolamento social: Ela evita lugares barulhentos ou cheios, limitando sua participação na comunidade.

  • Preocupação com o futuro: "Com quem ela ficará quando eu não puder mais cuidar dela?" – uma pergunta sem resposta, já que não há serviços públicos adequados para adultos autistas idosos.


O caso de Beatriz revela uma realidade cruel: o envelhecimento no espectro autista é ignorado. Não há políticas para transição da vida adulta à velhice, e mulheres como ela que também enfrentarão a menopausa são invisíveis nos debates sobre saúde feminina.

(Baseado no estudo de Reis, Novelli e Jurdi, 2024)


O silenciamento histórico do autismo feminino

Mulheres autistas ainda enfrentam grandes desafios diagnósticos. Muitos estudos destacam que os critérios clássicos de identificação do autismo foram, historicamente, construídos com base em meninos, o que torna o diagnóstico feminino mais difícil e tardio (Reis, Novelli & Jurdi, 2024). Como resultado, mulheres que hoje estão envelhecendo frequentemente não sabem nomear sua neurodivergência, vivendo anos com sofrimento psíquico, sensação de inadequação e quadros confundidos com depressão, ansiedade ou transtornos de personalidade.


Essa lacuna se intensifica na velhice. O envelhecimento da população autista adulta ainda é pouco estudado, e as mulheres são as mais esquecidas entre os esquecidos (Edelson et al., 2021). Quando os sintomas da menopausa emergem ondas de calor, alterações de sono, humor instável, fadiga, perda de libido eles se somam a um histórico de sobrecarga emocional, hipersensibilidade sensorial e dificuldades de regulação já presentes em muitas autistas.


A solidão do cuidado e a negligência das políticas públicas

O estudo de Reis, Novelli e Jurdi (2024) expõe uma verdade dura: quase não falamos sobre autismo na velhice. A pesquisa, um estudo de caso com Beatriz, uma mulher de 47 anos com autismo e dependência funcional, revela como a vida adulta e o envelhecimento no espectro são marcados por:


  • Falta de serviços especializados: Não há estruturas adequadas para apoiar transições ao longo da vida, especialmente após os 60 anos. Instituições de longa permanência não têm profissionais preparados para demandas específicas do autismo.

  • Sobrecarga dos cuidadores: Muitas vezes idosos, como o pai de Beatriz, de 81 anos, que enfrentam angústias sobre "quem cuidará delas quando eu partir?".

  • Restrição social: Rotinas limitadas ao ambiente doméstico ou institucional, com pouca participação comunitária e dificuldade em exercer cidadania.


Beatriz, como muitas mulheres autistas, vive uma realidade de isolamento. Seu lazer resume-se a passeios de carro com familiares e observar o mar da janela atividades adaptadas para evitar ansiedade, mas que refletem a escassez de opções inclusivas. A pesquisa alerta: o envelhecimento no autismo é heterogêneo, mas a sociedade o trata como homogêneo, ignorando potencialidades e singularidades.


A importância do reconhecimento: narrar para existir

Precisamos urgentemente romper com o ciclo de invisibilidade. Falar sobre menopausa e autismo em mulheres adultas não é apenas uma demanda clínica ou acadêmica. É um gesto político de afirmação de existência.


A literatura aponta que, quando têm acesso à informação, apoio psicológico e espaços de pertencimento, essas mulheres constroem novos sentidos para seu envelhecer (Ferreira et al., 2013; Sampaio et al., 2021). A menopausa pode, então, deixar de ser apenas o fim de um ciclo, e se tornar um portal para a reconfiguração identitária.


A escuta clínica, nesse contexto, precisa ser interseccional: deve considerar o gênero, a neurodiversidade, o corpo envelhecido e o histórico de exclusão.


Não basta compreender os sintomas. É necessário compreender a trajetória de apagamento e oferecer suporte para que o autoconhecimento seja possível.

Menopausa: mais que um evento biológico, um marcador biopsicossocial

A menopausa, apesar de ser um processo fisiológico natural, é atravessada por significados culturais, emocionais e sociais que impactam profundamente a experiência feminina (Souza & Araújo, 2015; Ferreira et al., 2013). Ela marca o fim simbólico da fertilidade e, muitas vezes, é erroneamente associada à perda de valor, à decadência e à inutilidade.


De acordo com Sampaio, Medrado e Menegon (2021), os discursos médicos e midiáticos sobre a menopausa muitas vezes reforçam um ideal de juventude eterna, prescrevendo a reposição hormonal como ferramenta para manter a mulher "desejável" e "útil" aos olhos do outro. A subjetividade feminina, então, é colonizada por uma lógica produtivista, heteronormativa e patriarcal, que não contempla a diversidade de corpos e vivências muito menos as das mulheres autistas.


Para muitas mulheres com TEA, o climatério pode representar um colapso sensorial e emocional. A hipersensibilidade a estímulos, a dificuldade de comunicação sobre o que sentem, e a exaustão acumulada de anos de camuflagem tornam essa fase ainda mais desafiadora. E como não foram ensinadas a olhar para si mesmas com legitimidade, raramente encontram espaços de escuta qualificada.


Menopausa: O Marco Invisível no Envelhecimento Feminino

A menopausa, por sua vez, já é um território de invisibilidades. Souza e Araújo (2015) e Sampaio, Medrado e Menegon (2021) destacam como esse período é medicalizado e estereotipado:


  • Patologização: Historicamente, a menopausa foi transformada de evento natural em "doença" a ser tratada com reposição hormonal. A indústria farmacêutica vende a ideia de que hormônios restauram juventude, libido e equilíbrio como nos vídeos analisados da Bayer, onde médicos associam a queda hormonal a fogachos, secura vaginal e "perda da feminilidade".

  • Pressões sociais: Mulheres são cobradas a permanecerem jovens, sexualmente ativas e atraentes para parceiros heterossexuais. A reposição hormonal, nesse contexto, torna-se uma "obrigação" para evitar a exclusão social.

  • Desinformação: Muitas mulheres chegam à menopausa sem compreender suas mudanças corporais, enfrentando estigmas como "fim da sexualidade" ou "início da decadência".


Souza e Araújo (2015) reforçam: a menopausa é vivida de forma única, mas prevalecem concepções negativas que impactam a autoestima. Já Sampaio et al. (2021) criticam a lógica heteronormativa por trás dos tratamentos como a prescrição de testosterona para "reacender o desejo" e salvar casamentos.


Quando Autismo e Menopausa Se Encontram: A Dupla Invisibilidade

Agora, imaginem o cruzamento desses dois universos. Mulheres autistas entrando na menopausa enfrentam:


  1. Barreiras no diagnóstico: Sintomas da menopausa (como alterações de humor, ansiedade ou fogachos) podem ser atribuídos erroneamente ao autismo, mascarando necessidades específicas.

  2. Falta de adaptação nos serviços: Consultas ginecológicas ou terapias hormonais raramente consideram sensibilidades sensoriais (luzes, sons, toques) ou dificuldades de comunicação dessas mulheres.

  3. Invisibilidade na pesquisa: Quase não há estudos sobre menopausa em mulheres autistas. Como relatar sintomas se muitas têm comprometimento na comunicação verbal, como Beatriz? Como discutir sexualidade se suas vivências são infantilizadas?

  4. Dupla estigmatização: Se a sociedade já vê a menopausa como "fim da feminilidade", mulheres autistas são ainda mais estereotipadas como "assexuais" ou "eternas crianças". O artigo de Reis et al. (2024) menciona o risco de abusos devido à vulnerabilidade aumentada.


Por Uma Visibilidade Urgente: Cuidado Integral e Respeito às Singularidades

Precisamos romper esse ciclo de invisibilidade. Como profissionais de saúde, devemos:


  • Ampliar pesquisas: Incluir mulheres autistas em estudos sobre envelhecimento e menopausa, usando metodologias acessíveis (como comunicação alternativa).

  • Criar redes de apoio: Serviços especializados que integrem geriatria, ginecologia, terapia ocupacional e saúde mental, focados em autonomia e qualidade de vida.

  • Desmedicalizar o envelhecer: Questionar a prescrição automática de hormônios e priorizar estratégias não farmacológicas (como adaptações ambientais, suporte psicológico e atividades inclusivas).

  • Empoderar vozes: Como propõe a neurodiversidade, valorizar as narrativas das próprias mulheres autistas, reconhecendo que o envelhecimento pode trazer desafios, mas também sabedoria e resiliência.


Um convite à visibilidade

Se você é uma mulher autista passando pela menopausa diagnosticada ou não saiba que seu corpo não está errado. Que seu silêncio é compreensível, mas não precisa ser definitivo. Que existem outras como você, e que há caminhos para ressignificar esse momento.


Enquanto neuropsicóloga, mulher e pesquisadora, deixo aqui meu convite: falemos sobre isso. Criemos rodas, escrevamos sobre nossas experiências, tensionemos os discursos hegemônicos sobre o corpo e a mente feminina. Só assim o envelhecer autista poderá ser, finalmente, visto, nomeado e acolhido.


Com Carinho,

Neuropsicóloga Aline Vicente - CRP 12/20020


Referências

  • Reis, V. R. de J., Novelli, M. M. P. C. & Jurdi, A. P. S. (2024). O processo de envelhecimento de uma pessoa com autismo na perspectiva do cuidador: estudo de caso. Revista Ocupación Humana, 24(1), 50-63.

  • Souza, N. L. S. A. de, & Araújo, C. L. de O. (2015). Marco do envelhecimento feminino, a menopausa: sua vivência, em uma revisão de literatura. Revista Kairós Gerontologia, 18(2), 149-165.

  • Sampaio, J. V., Medrado, B., & Menegon, V. M. (2021). Hormônios e mulheres na menopausa. Psicologia: Ciência e Profissão, 41, e229745.

  • Ferreira, V. N., Chinelato, R. S. C., Castro, M. R., & Ferreira, M. E. C. (2013). Menopausa: marco biopsicossocial do envelhecimento feminino. Psicologia & Sociedade, 25(2), 410-419.


2 comentários

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Sandrinha
Sandrinha
06 de ago.
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Excelente trabalho Aline! Parabéns por expressar esse tema tão relevante e tão ignorado pela sociedade em geral! Necessita urgente sair do meio acadêmico e avançar para a sociedade como um todo, as políticas públicas chamarem para si a causa!

Parabéns.

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Aline Vicente
Aline Vicente
04 de set.
Respondendo a

Gratidão Sandra, de fato, precisamos urgente! 🌻

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