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Fala Idiossincrática no Autismo: Quando a Família Confunde com Esquizofrenia

Atualizado: 11 de fev.


Como neuropsicóloga, frequentemente encontro casos em que características do Transtorno do Espectro Autista (TEA) são confundidas com outros transtornos, como a esquizofrenia. Um dos critérios diagnósticos mais mal interpretados é a estereotipia da fala, especialmente quando se manifesta como linguagem idiossincrática – frases repetitivas, neologismos ou fixação em assuntos específicos. Neste blog, vou explicar por que essa confusão acontece, trazer um exemplo prático de um paciente adulto e destacar as diferenças cruciais entre TEA e esquizofrenia, usando o DSM-5-TR e dados científicos como base.


1. O Que é Estereotipia da Fala no Autismo?

Segundo o DSM-5-TR, um dos critérios do Grupo B para o diagnóstico de TEA é a presença de padrões restritos e repetitivos de comportamento, incluindo estereotipias motoras ou verbais. A estereotipia da fala pode se manifestar de várias formas:


  • Ecolalia: Repetição de palavras ou frases ouvidas (ex.: repetir diálogos de filmes).

  • Idiossincrasias verbais: Uso de linguagem peculiar, como neologismos (palavras inventadas) ou frases fora de contexto.

  • Hiperfoco em tópicos específicos: Falar incessantemente sobre um assunto restrito (ex.: horários de trens ou detalhes técnicos de computadores).


Por que isso é confundido com esquizofrenia? A fala desconexa e os neologismos são também sintomas de esquizofrenia (critério A do DSM-5-TR). Porém, no autismo, essas características não estão associadas a delírios ou alucinações um ponto-chave para o diagnóstico diferencial.


2. Exemplo Prático: O Caso de Rafael

Rafael, 28 anos, foi encaminhado à minha clínica pela família, que suspeitava de esquizofrenia. Os relatos incluíam:

  • Falas repetitivas: Rafael recitava trechos inteiros de documentários sobre astronomia, mesmo em conversas informais.

  • Neologismos: Chamava seu cachorro de "astrocanino" e insistia que essa era a palavra correta.

  • Frustração social: Quando interrompido, gritava: "Isso é um desastre cósmico!", uma frase que repetia desde a infância.


A família acreditava que ele tinha "delírios" por associar a linguagem peculiar a sintomas psicóticos. Porém, na avaliação neuropsicológica, observei:


  • Ausência de delírios ou alucinações: Rafael não acreditava que suas frases tinham significados ocultos ou que eram impostas por vozes.

  • Histórico consistente com TEA: Relatos de isolamento na infância, dificuldade em fazer amigos e interesse obsessivo por astronomia desde os 6 anos.

  • Funcionamento adaptativo: Trabalhava como auxiliar de biblioteca e organizava livros meticulosamente, sem prejuízo à sua rotina.


O diagnóstico final foi TEA nível 1 (suporte leve), e a terapia focou em estratégias para comunicação funcional, respeitando suas particularidades.


3. Diferenças Entre Fala Idiossincrática (TEA) e Esquizofrenia (DSM-5-TR)

Característica

TEA

Esquizofrenia

Origem da Fala Estranha

Interesses restritos ou ecolalia.

Delírios ou desorganização do pensamento.

Consciência da Realidade

Mantém contato com a realidade.

Presença de delírios/alucinações.

Idade de Início

Sintomas presentes desde a infância.

Surge geralmente na adolescência/juventude.

Intenção Comunicativa

Busca compartilhar interesses, mesmo que de forma inadequada.

Fala desconexa e sem propósito comunicativo.

Referência DSM-5-TR:
  • TEA: Critério B1 (estereotipias da fala) + déficits sociais (Critério A).

  • Esquizofrenia: Critério A (delírios, alucinações, discurso desorganizado) + prejuízo funcional.


4. Por Que a Confusão Acontece? Dados Científicos

Estudos mostram que até 15% dos adultos com TEA são inicialmente diagnosticados erroneamente com esquizofrenia, principalmente quando há traços de linguagem peculiar (Lugnegård et al., 2015). Isso ocorre porque:


  1. Sintomas sobrepostos: Ambos podem apresentar fala repetitiva ou incomum.

  2. Desconhecimento do TEA em adultos: Muitos casos de autismo leve só são identificados tardiamente.

  3. Estereótipos culturais: A esquizofrenia é mais associada a "comportamentos estranhos" do que o autismo.


5. Riscos de um Diagnóstico Equivocado

  • Medicação Inadequada: Antipsicóticos, usados na esquizofrenia, são desnecessários e podem causar efeitos colaterais graves em autistas.

  • Falta de Apoio Específico: Estratégias para TEA (ex.: terapia ocupacional) são negligenciadas.

  • Estigmatização: O rótulo de esquizofrenia pode levar a preconceitos e isolamento social.


Dra. Aline Vicente explica: "Avaliar o histórico de desenvolvimento é essencial. No TEA, os padrões de fala idiossincrática estão presentes desde a infância, enquanto na esquizofrenia, há uma ruptura clara com o funcionamento anterior."


6. Como a Neuropsicologia Faz o Diagnóstico Diferencial?

Na minha prática, sigo três passos:


  1. Entrevista de Desenvolvimento: Investigar se os sintomas existiam antes dos 3 anos (indicativo de TEA).


  2. Avaliação de Sintomas Positivos: Descartar alucinações ou delírios (inexistentes no autismo puro).


  3. Testes Específicos:

    • ADOS-2: Avalia comunicação e comportamentos repetitivos no TEA.

    • PANSS: Escala para sintomas de esquizofrenia.


7. Tratamento: Focando no Autismo

Para casos como o de Rafael, o plano incluiu:


  • Treino de Habilidades Sociais (THS): Aprender a modular a fala em contextos sociais.

  • Comunicação Alternativa: Uso de aplicativos para expressar interesses de forma organizada.

  • Psicoeducação Familiar: Explicar que "astrocanino" não era um delírio, mas uma forma criativa de se expressar.


Dados Relevantes:
  • Intervenções focadas em comunicação reduzem ansiedade em 60% dos adultos com TEA (Howlin et al., 2013).


Conclusão: Entender para Não Julgar

A fala idiossincrática no autismo não é um delírio, mas uma expressão de como o cérebro neurodivergente processa informações. Se você desconfia que um familiar pode estar passando por essa situação, busque uma avaliação neuropsicológica especializada. Na Psicovivendo, estamos preparados para desvendar esses desafios com precisão e empatia.


👉 Agende uma consulta e ajude quem você ama a receber o suporte adequado.


Autora: Dra. Aline Vicente – Neuropsicóloga CRP 12/20020


Referências Científicas:

  • American Psychiatric Association. (2022). DSM-5-TR.

  • Lugnegård, T. et al. (2015). Asperger Syndrome and Schizophrenia: Overlap of Self-Reported Autistic Traits.

  • Howlin, P. et al. (2013). Social Outcomes in Mid- to Later Adulthood Among Individuals Diagnosed With Autism and Average Nonverbal IQ as Children.


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